Entre um PowerPoint e um colapso
- Mundo Encantado dos Livros
- 21 de jul.
- 3 min de leitura
A crônica retrata, com ironia e sensibilidade, o recesso curtíssimo dos professores, um período de descanso para redobrarem as energias. O retorno… ah o retorno… reuniões pedagógicas repletas de jargões vazios, promessas de inovação e plataformas que mais confundem do que ajudam, o professor enfrenta o retorno às aulas com cansaço acumulado, salário congelado e a constante exigência de se reinventar. Ainda assim, entre a precariedade e o caos cotidiano, resiste com coragem. Porque basta um olhar atento de um aluno, um pedido sincero de ajuda, para reacender o propósito de continuar, mesmo que a pergunta siga ecoando: E o salário, ó…

O recesso acabou. Mentira, ele nunca começou de verdade. O professor apenas trocou o som do sinal pelo do aspirador de pó e a chamada nominal pela lista do supermercado.
Mal esquentou a rede e já chegou o recadinho do coração no Whatsapp:
“Reunião pedagógica: presença obrigatória.”
E lá vai ele: o guerreiro de mochila nas costas e olheiras no rosto, pronto para mais uma batalha contra o bom senso.
A sala está cheia, no entanto ninguém está presente. O coordenador liga o projetor como quem abre as portas do inferno em PowerPoint.
— Vamos falar de metas, desafios e inovação!
E o salário, ó...
Começa o desfile de palavras bonitas: "ressignificar", "engajamento", "protagonismo do aluno", "cultura maker"... Parece que vão montar um reality show na escola. O colega do lado sussurra:
— Daqui a pouco pedem pra gente dançar no TikTok da escola.
E o salário, ó...
Enquanto isso, a coordenadora fala como se vendesse um curso online de felicidade:
— Precisamos ser luz na vida dos alunos. E tudo começa com um primoroso planejamento.
Entretanto esquece que até a luz tem conta pra pagar. E que professor sem reajuste vira vela: ilumina os outros enquanto derrete por dentro.
A pauta avança. Agora vem a parte da “formação continuada”, da “avaliação diagnóstica” e da “plataforma de acompanhamento em tempo real”.
— Tudo será feito pelo aplicativo, tá bom?
Agora o professor precisa ser educador, técnico de TI, animador de auditório e ainda fingir que entendeu aquele tutorial de dezoito minutos sobre como lançar nota no novíssimo sistema.
— E o salário, ó...
No intervalo, o cafezinho (frio e fraco) une os sobreviventes. Um colega diz:
— Esse ano eu prometi que não vou surtar.
O outro responde:
— Prometi o mesmo ano passado. Surtei em agosto...
— E o salário, ó...
E assim chega o primeiro dia de aula.
O professor entra na sala como se fosse estrear uma peça... e é mesmo.
Sorriso forçado, voz animada e esperança que dura até o primeiro “vai ter trabalho hoje?”.
Alguém dorme. Outro pede pra ir no banheiro. Um terceiro filma tudo pro Instagram.
E o professor ali, firme, com a mesma calma de quem segura um copo d’água no meio de um terremoto.
Porém eis que, no meio do caos, acontece o que ninguém do sistema prevê: um aluno te olha nos olhos, levanta a mão e pergunta:
— Professor, você pode me explicar isso de novo? É que só você consegue me fazer entender.
Silêncio.
Respiração presa.
O professor sorri. E por um segundo, só um segundo, ele lembra por que ainda está aqui.
A lousa continua suja, o salário segue congelado, o sistema continua surdo.
— E o salário, ó...
E ali, entre um PowerPoint e um colapso, um professor decide resistir mais um ano.
Com café fraco, sim. Contudo com coragem forte.
— E o salário, ó...
✍️ Escrito por: Arthur Souto
📚 Autor de: Pé de Menina, O Tumbeiro (Prêmio Book Brasil 2024), A Fada do PIX (Prêmio Ecos da Literatura), Minha vida em versos e flores.
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