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O Recesso

  • Foto do escritor: Mundo Encantado dos Livros
    Mundo Encantado dos Livros
  • 14 de jul.
  • 4 min de leitura

Com humor ácido e uma dose generosa de verdade, Arthur Souto escancara o cotidiano exaustivo dos professores antes das tão esperadas férias escolares. Entre conselhos de classe burocráticos, checklists kafkianos e exigências surreais do “sistema”, o texto revela como o professor, mesmo no recesso, demora a desconectar do ritmo frenético da escola. Mas é nesse intervalo, entre cochilos, sustos domésticos e redescobertas familiares, que ele finalmente se reencontra como ser humano. Muito além de um simples descanso, o recesso se torna um respiro necessário, um lembrete de que, antes de tudo, o educador é gente.

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Tudo começa com o glorioso Conselho de Classe, que, como todos sabem, deveria ser um momento de reflexão profunda sobre o desenvolvimento dos alunos, suas dificuldades, suas conquistas, suas histórias de vida...


Mas não. A verdadeira estrela do show é o Sistema, esse ser mítico e voraz que quer saber se os alunos acessaram a plataforma X, Y, Z, W e talvez até o TikTok, desde que a atividade esteja integrada ao currículo.


— O 8º B acessou o Aprender Conectado? — questiona a coordenadora, olhando a tela do seu notebook.


— Não, digníssima coordenadora, porém eles abriram o site e olharam o botão “entrar” com uma atenção pedagógica impressionante! — responde a professora Etelvina, olhando pela décima vez o relógio.


— Anota como acesso. Vale, contou tempo... valeu.


E o aluno que não conseguiu acompanhar o conteúdo porque estava cuidando do irmão mais novo enquanto a mãe fazia hora extra no supermercado? Ah, esse é invisível. O importante é o “índice de engajamento digital”.


Terminado o conselho, o professor, exausto, pensa: “Agora sim, é só entregar tudo e correr pro abraço!”


Doce ilusão.


Surge o temido Check List Final, um ritual sagrado onde o professor, com as olheiras de um panda e a esperança de um chinelo furado, deve comprovar que:


✅ Entregou as rotinas de aula organizadas em fontes compatíveis com as diretrizes visuais da ONU;

✅ Preencheu os portfólios, incluindo três fotos 3x4, RG, CPF, nome da avó materna do aluno;

✅ Atualizou o diário digital, mesmo sem internet decente desde março;

✅ Enviou relatório socioemocional (mesmo sem tempo para emoções desde abril).


Depois de assinar mais papéis que um servidor do cartório central, finalmente... RECESSO.


Aaaaaah, recesso... A palavra soa como um alívio nos tímpanos. O professor se vê deitado numa rede imaginária, planejando dormir até meio-dia, com o despertador jogado longe e a paz reinando como se o mundo tivesse parado. No entanto às 4h da manhã, sem qualquer aviso ou remorso, os olhos se abrem como se um alarme nuclear tivesse tocado. Não há barulho. Não há luz. Não há lógica. Só há um cérebro condicionado como cachorro de Pavlov ao toque da sirene da escola.


Sem nada para fazer, resolve andar pela casa... e aí a descoberta:


— O que é isso no canto da sala? Um hamster? Meu Deus, desde quando temos um hamster?

Mais um susto...

— E esse menino de bigode... é meu filho? Ele já usa desodorante?


A rotina do dia a dia cega o professor a tudo que não fosse aula, reunião, alunos e mais checklists. Agora, sem a guerra cotidiana, ele repara: a planta da sala morreu faz três meses; tem um vazamento no teto que imita a Capela Sistina; e o gato da vizinha adotou seu quintal como sede oficial da sua máfia felina.


Com o passar dos dias, o corpo começa a entender que está de férias. Primeiro, o milagre: dormir até 6h! Uma vitória!

Depois, outro progresso: acordar às 7h e até esquecer de revisar o plano de aula.

No final do recesso? Dorme até 8h30. Não acorda nem com o caminhão do gás tocando “olha o gás, gás, gás...” na porta. Um milagre da biologia docente.


É nesse momento que bate o medo: “Meu Deus, e quando as aulas voltarem? Vou precisar de um despertador no ouvido e um balde de café intravenoso.”


No entanto logo vem a sabedoria interior: “Calma, professor. Aproveita. O relógio pode esperar. Os relatórios podem esperar. O sistema... bem, o sistema nunca espera, contudo, a gente precisa aprender a fingir que ele não é prioridade.”


No fim, entre cochilos fora de hora, séries inacabadas e tentativas frustradas de “colocar a vida em ordem”, o professor entende que o recesso é mais que um intervalo: é um respiro de humanidade. É quando ele se reconecta com a casa, com o filho, com o espelho (ainda que a olheira o encare de volta) e, principalmente... com ele mesmo.


Porque antes de ser educador, funcionário, planejador, digitador, psicólogo, conselheiro e estatística ambulante, ele é gente. E gente também precisa de férias, de cochilo, de riso, de paz. E de esquecer por alguns dias que existe algo chamado: "plataforma digital".


Escrito por: Arthur Souto


Instagram: @mundo_encantado_dos_livros


Autor de:

Pé de Menina

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