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A Avaliação Invisível

  • Foto do escritor: Mundo Encantado dos Livros
    Mundo Encantado dos Livros
  • 8 de jun.
  • 3 min de leitura

Por: Arthur Souto

A crônica retrata a dura realidade de Marisa, professora veterana dedicada, que vê décadas de experiência e amor pela docência serem reduzidas a uma nota fria de desempenho enviada por e-mail. Sem contexto, diálogo ou avaliação humana, ela é julgada por um sistema impessoal e ameaçada de remoção da escola onde construiu sua história. A narrativa denuncia o processo de desumanização da educação, onde professores são substituídos por algoritmos e eficiência artificial, ignorando vínculos afetivos e saberes intangíveis. Com sensibilidade e crítica, o texto expõe o impacto emocional da "servidão algorítmica" sobre os educadores e alerta para o risco de apagamento da dimensão humana da escola.

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Marisa chegou cedo, como sempre. Era a primeira a pisar na escola e a última a sair. Professora de Língua Portuguesa há 28 anos, já tinha ensinado o mesmo conteúdo com todas as reformas possíveis: da LDB ao Novo Ensino Médio, da apostila ao PowerPoint, da máquina de datilografar ao tablet emprestado pela secretaria que travava na hora da chamada.


Ela conhecia cada aluno pelo nome. Sabia quem estava triste pela forma como segurava a caneta, e quem faltava por precisar cuidar do irmão menor enquanto a mãe trabalhava no mercado. Marisa não dava aula, Marisa dava conta. De tudo.

Até que um e-mail chegou.


“Prezada professora, sua pontuação de desempenho foi de 62.4. A média da escola foi de 71.1. Informamos que, caso não haja melhora, poderá haver sua retirada do quadro da unidade escolar no próximo ciclo.”


Foi assim, frio. Sem conversa, sem contexto, sem o nome de quem avaliou. Nenhuma visita em sala, nenhum formulário respondido. Só um número. 62.4.

Marisa achou que era brincadeira. Procurou a direção. O diretor, envergonhado, abaixou os olhos.


— Veio de cima, Mari... Ninguém aqui teve acesso. Nem eu. Dizem que é “inteligência artificial”.

— Inteligência artificial? E a burrice institucional, ninguém mensura? — questionou Marisa indignada com a falta de consideração da tal I.A, já que dos seus superiores ela não esperava mais nada de bom.


Naquela semana, ela teve uma crise de ansiedade pela primeira vez na vida. Não pelas três aulas seguidas sem intervalo, nem pelos boletins para preencher em casa, nem pelo aluno que surtou na sala e jogou a carteira na parede. Não... não... não... Foi por saber que, depois de quase três décadas, um número decidido por um robô ou por um burocrata com Excel poderia arrancá-la do lugar onde fincou raízes.


Marisa olhou para os armários de ferro com seus cartazes de ortografia, o mural do sarau, o bilhetinho do aluno da sétima B que dizia “a senhora é minha inspiração”. Tudo aquilo podia sumir em um clique. Seu histórico profissional? Inexistente. Suas formações? Irrelevantes. Seu amor pelo ofício? Inquantificável. E, por isso mesmo, invisível.


Na semana seguinte, a coordenadora avisou que haveria “formações obrigatórias para melhorar o desempenho docente conforme os indicadores”. Marisa apenas assentiu. Enquanto isso, uma novata de 21 anos, recém-saída da faculdade, sem experiência, porém com nota 78.9, era ovacionada em reunião como “modelo de excelência”.

Na hora do intervalo, sentada com seu pão com margarina e café morno, Marisa escutou um colega dizer:


— A educação agora é um aplicativo. Quem não atualiza, trava. Quem não performa, é desinstalado.


Ela respirou fundo. Olhou para o pátio, viu os meninos jogando bola com uniforme rasgado, as meninas cochichando debaixo da árvore, e pensou:


“Enquanto me deixarem entrar nessa escola, eu não vou embora. Nem que me tirem no braço.”


No entanto no fundo, ela sabia: o que estava em jogo não era só ela. Era toda uma geração de professores sendo substituída por números, rankings, metas inalcançáveis. Era o fim da docência como ato humano, e o começo da servidão algorítmica.


Por: Arthur Souto

@mundo_encantado_dos_livros


Autor de:

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Pé de Menina

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