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Meu Filho, o Boyneco

  • Foto do escritor: Mundo Encantado dos Livros
    Mundo Encantado dos Livros
  • 8 de jun.
  • 3 min de leitura

Por: Arthur Souto

Em tom ácido e bem-humorado, Arthur Souto narra o encontro surreal com uma “mãe” que passeia por São Paulo empurrando um bebê reborn como se fosse um filho real. A crônica reflete com ironia sobre a crescente busca por afeto simulado em tempos de carência emocional e encenações digitais. Entre fraldas de boneco, partos fictícios e cuidados exagerados com filhos de vinil, o autor denuncia uma sociedade que prefere relações controladas e estéticas à complexidade e imprevisibilidade do afeto verdadeiro — esse, muitas vezes, esquecido nas calçadas da cidade.

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Outro dia, caminhando pela Praça Silvio Romero, tentando digerir um pastel de vento com caldo de cana a 12 reais, dei de cara com uma cena que merecia ser tombada pelo IPHAN como patrimônio do absurdo paulistano: uma senhora, cabelo azul Koleston, vestido de chita florido e um tênis de academia claramente aposentado. Empurrava um carrinho de bebê como se transportasse uma relíquia.


Acontece que o bebê... não mexia. Nem uma piscada, nem um arroto. Era mais parado que o trânsito da Radial Leste às 18h.


Era um reborn... sim um bebê de silicone. Mas não qualquer silicone: era importado, modelado à mão, com cílios aplicados fio a fio por uma artesã de Curitiba e custava, segundo a própria orgulhosa progenitora, mais que três boletos vencidos do meu cartão de crédito.


— Esse é o Heitor Lorenzo Gabriel IV Júnior — disse ela, com brilho nos olhos e voz de comercial da Natura.


Sorri. Com aquele sorriso que a gente dá quando escuta uma teoria da conspiração no vagão do metrô.

Um “que... tranquilo ele, né?” escapou da minha boca, meio elogio, meio pedido de socorro.


Saí andando, tentando entender como chegamos ao ponto em que bonecas de pano viraram herdeiros fictícios e silicone virou símbolo de afeto.

São Paulo já teve suas loucuras: arranha-céus de 1 metro quadrado, aluguel por QR code, hipster gourmetizando feijoada... mas parir boneco e fazer chá de fralda simbólico no salão de festas do prédio já é flerte com distopia.


A moda reborn chegou como tudo nessa cidade: primeiro na Augusta, depois no Tatuapé, até virar epidemia na Mooca. Começou com colecionadores, virou “terapia” e agora é maternidade performática com direito a Instagram, ensaio newborn e simulação de parto gravada no celular.


Sim, isso existe. E vem com trilha sonora de Coldplay.


E que ninguém ouse dizer que “é só um boneco”, porque a patrulha da empatia virtual vem com textão no Facebook, dancinha no TikTok e denúncia no Reclame Aqui.


Ah, que tem os cuidados com o pequenino: não pode sol (desbota), não pode balançar (solta o pescoço), tem que pentear o cabelo com escova de bebê real, comprada na Droga Raia, e não pode chamar de “brinquedo”, ou você vira inimigo número um do grupo “Mamães Reborn SP Capital”.


Enquanto isso, as crianças de verdade, aquelas que gritam no shopping, pedem batata frita no café da manhã e fazem escândalo no terminal Parque Dom Pedro II, já são vistas como um problema, pois dão trabalho demais da conta. Já vi, com estes olhos que a garoa há de comer, uma criança sendo afastada do parquinho do Ibirapuera porque estava “muito agitada perto do Davi Enzo de borracha da Tia Clô”.


E teve caso real em Itaquera: um menino de 5 anos tomou bronca porque a bola dele quase acertou o “bebê”.


— Cuidado, seu malcriado! Você quase acertou a moleira do Matheus Ravi!


A “moleira”, no caso, feita de vinil alemão antialérgico.


O comércio, claro, enxergou o filão. Já tem loja na 25 de Março vendendo fralda P para boneco, body da Galinha Pintadinha em versão colecionável e até plano de saúde simbólico, “Só pra dizer que está com a pediatra em dia, sabe?”.

Eu, que luto pra manter um cacto vivo na sacada, fico besta com a dedicação.


E sabe o que me dá medo de verdade? Que inventem o reborn adolescente. Aí lascou. Boneco de 16 anos que bate porta imaginária, pede iPhone de Natal e diz que tudo é "cringe"? É o apocalipse com endereço fixo em Perdizes.


A verdade é que São Paulo anda tão carente, tão anestesiada de afeto verdadeiro, que tem gente preferindo filho que não chora, não cresce e, o mais importante, não entra com pedido de pensão no Fórum da Barra Funda.


E assim seguimos: fingindo maternidade, encenando afeto, simulando vidas perfeitas com filtro Lo-Fi e boneco no colo. Enquanto isso, a realidade, essa sim, está largada no chão da Sé, pedindo colo. Sem silicone, sem rodinha de carrinho, sem like no Instagram.


Mas também sem preço.


Por Arthur Souto.

@mundo_encantado_dos_livros


Autor de:

A FADA do PIX (ganhador como melhor livro original 2024 do @premioecosdaliteratura)

Pé de Menina

O Tumbeiro (ganhador como melhor romance de 2024 pelo @premiobookbrasil)

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